Texto por Camila Infanger
Num almoço entre amigos, eis que ouço de uma amiga, engenheira de carreira na docência em uma universidade particular, sobre sua experiência numa banca para contratação de um novo docente para um programa de engenharia de uma universidade pública aqui do estado de São Paulo. Ela dizia não ter concordado com a ação afirmativa voltada para candidatos PPI(pretos, pardos e indígenas) nesta etapa da carreira. Argumentava que tendo chegado ao nível de doutor e ter se classificado para o concorrido edital para professor de uma universidade de renome, não seria justo ser contemplado com um fator de correção, em outras palavras ser positivamente discriminado, em sua candidatura ao cargo.
Sua colocação me fez refletir muito sobre como avanços que consideramos no caminho de serem consolidados na agenda de igualdade, diversidade e inclusão ainda são questionados e não reconhecidos em áreas para fora das humanas. Obviamente não podemos considerar as humanas, por assim dizer, um monólito, um objeto sólido e homogêneo de opiniões e perspectivas. Mas na bolha que me encontro: de pesquisadores de estudos de gênero, da ciência política e de outras linhas de humanas em geral, há tempos que não me deparava com uma oposição tão direta à ampliação de representatividade racial. Minha interpretação é que uma oposição como essa se dá com base numa premissa de que candidatos e candidatas que competem por uma vaga de professor se encontram em pé de igualdade e que o processo deve ser decidido com base no mérito. Entretanto, a realidade invisibilizada até poucos anos atrás no Brasil traz evidências de que as histórias que precedem a chegada a um mesmo pódio, são muito diferentes.
Desde 2014, uma lei com validade de exatos 10 anos estabeleceu que instituições de ensino federais deveriam reservar 20% das vagas para candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas. Foi necessário, no entanto, que o STF agisse para que a regra fosse, de fato, respeitada no ensino superior. O respeito, por assim dizer, à regra acontece de forma tortuosa precisamente por existir um contrassenso sobre a legitimidade das ações afirmativas entre aqueles e aquelas que formam atualmente o corpo docente e acadêmico das instituições de prestígio brasileiras. Em desvio direto do pretexto típico de se proteger e fazer a manutenção dos patamares de excelência acadêmica adquirida pelas instituições, é que os tomadores de decisão julgam políticas de cotas como injustas frente às condições que todos os outros candidatos chegaram na mesma etapa de seleção. Mas existe mesmo essa paridade de condições entre todos e todas que chegam a uma banca de seleção para um cargo na docência? Seria real essa presunção de simetria de histórias de todas as pessoas que, em tempos atuais, apesar de toda a precarização, ainda se atraem pela carreira acadêmica no Brasil? Não, não é real. Esta suposta simetria não existe. Posso embasar essa afirmação com dados que revelam a realidade por exemplo, da USP, onde apenas 1,8% dos mais de 5 mil professores são pardos e o percentual de pretos é de 0,3%, sendo que em mais de 20 unidades não há sequer um professor negro (PINHO, 2019). Ou mesmo de forma mais ampla, em relação à pós-graduação brasileira, onde a proporção de brancos entre mestres e doutores é da ordem de 80% (CORDEIRO, 2017, p. 212; VENTURINI, 2019, p. 152) . Mas posso também escolher um olhar qualitativo para esta questão e me aprofundar pelas diferenças nas histórias vividas pela população negra, em especial pelas mulheres negras, mesmo aquelas que já aparentemente são tidas como privilegiadas por terem galgado espaços prestigiosos na academia. Compartilho aqui a história de Givânia Maria da Silva, mulher quilombola do interior de Pernambuco, mais especificamente da comunidade Conceição das Crioulas, uma comunidade fundada por mulheres. Acadêmica, já ocupou cargos em instituições como a UnB e a USP, além de ter atuado na política como vereadora. Aprendi sobre ela na entrevista que deu ao podcast Mulheres Quilombolas nas Ciências, contando sua trajetória entremeada na luta por transformar a academia em um espaço menos injusto, machista e também menos racista. Ao ser a primeira mulher de seu quilombo a cursar o ensino superior, na década de 90, ela hoje comemora que na escola local todos os professores e professoras têm origem no quilombo. Nasce aí a concepção educação escolar quilombola que ela descreve como um movimento que possibilita à escola deixar de ser uma peça morta no território, mas passar a ser um espaço de defesa de direitos e de criação de fórmulas de educação que sejam integráveis à vida das pessoas, às vidas das pessoas quilombolas.
As impressões de Givânia sobre as pessoas com quem conviveu no ambiente acadêmico são marcadas por sua história e pelo contexto onde foi socializada. Quando ela diz que via na universidade pessoas muito novas fazendo doutorado, com cerca de 30 anos, ela fala de um lugar onde a carreira acadêmica acontece em paralelo a uma vida de trabalho – a atividade acadêmica aí não significando um trabalho, ao menos não no centro das atividades produtivas – onde a remuneração não está necessariamente em consonância com aspirações profissionais, afinal não acontecem concomitantemente. A realidade que observo no meu contexto, em um programa de doutorado na USP, é de uma maioria dominante de estudantes mais novos que 30 anos. De estudantes que seguiram para a pós -graduação diretamente após se formarem na graduação, muitos deles com menos de 25 anos. Conheci no exterior, na Universidade de Oxford, doutores e doutoras com 29 anos já vinculados a programas de pós-doutorado ou mesmo próximos à etapa professoral. E aí identificam-se de forma saliente as diferenças invisibilizadas e os privilégios de classe, mas também de raça. O momento típico de entrada na pós-graduação, a duração típica de conclusão de um programa de pós-graduação, a idade e o momento de carreira típicos de decisão pela maternidade não são os mesmos de uma mulher branca de classe média nascida na cidade de São Paulo, que uma mulher negra, nascida em um quilombo no interior de Pernambuco. Mas ambas chegam à etapa de entrevistas, à etapa subjetiva, de um processo seletivo para uma única vaga de professor de uma universidade pública. Givânia disse que sempre teve que trabalhar para conseguir estudar, que ambas atividades eram correlatas. Nas entrelinhas nos disse não ter tido o privilégio de só estudar. Givânia também disse de forma preciosa que fazia ciência muito antes da academia, nos provocando a pensar o que é ciência e como ela é feita. Nos provocando sobre a relevância dos saberes orais, da história oral e das práticas comunitárias ainda (quero crer) não incorporadas ao repertório científico. Givânia representa a história de muitas outras mulheres brasileiras que compõem a rica variedade da população brasileira que também queremos que exista na comunidade acadêmica brasileira. As ações afirmativas são ferramentas para ampliarmos essa representatividade e sermos capazes de produzir ciência com a mesma riqueza que formamos nossa cultura. Por isso precisamos discutir e debater como são absorvidas e recebidas nas diferentes áreas da ciência e não somente entre os círculos que as propõem. Diversidade importa muito para a ciência e também para os cientistas.
Para quem se interessar mais pelo tema de cotas em concursos públicos, recomendamos o artigo abaixo para leitura:
Alencar, A. E. V. (2021). Re-existências: notas de uma antropóloga negra em meio a concursos públicos para o cargo de magistério superior. Revista de Antropologia, 64, e189647.
Notas:
1 https://g1.globo.com/educacao/noticia/2022/08/29/lei-de-cotas-em-concursos-entenda-por-que-universidades-sorteiam-vagas-para-contratar-professores-negros.ghtml
2 https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/229/ril_v58_n229_p11.pdf (pg.9)
3 https://www.gov.br/incra/pt-br/assuntos/governanca-fundiaria/conceicao_das_crioulas.pdf
4 https://open.spotify.com/show/1fWDmKaaHyyarCnbLZa8j8
5 https://www.seduc.ce.gov.br/educacao-escolar-quilombola/

