
Texto: Gisele Camilo da Mata, Vanessa Suany e Camila Infanger
Em 2024, no dia 20 de novembro, pela primeira vez, será feriado nacional em comemoração ao Dia da Consciência Negra. Essa frase precisa ser repetida, reforçada e absorvida por toda população brasileira. Demoramos 135 anos após abolição da escravatura para entendermos que pessoas negras, pretas, que por vezes são referidas como “de cor”, que por vezes são invisibilizadas pelo mito da democracia racial, vivem uma vida diferente, e mais vulnerável, que a população branca e sabidamente privilegiada. A entrada dessa data no calendário de feriados nacionais é fundamental para a percepção de que ainda falta muito para que essa consciência seja verdadeiramente incorporada pela sociedade e pelo Estado brasileiro.
Sim, somos um país racista, e o primeiro passo para mudar isso é nos reconhecermos enquanto uma sociedade que opera sob a lógica do racismo. Basta olharmos para os dados sobre raça e segurança pública: enquanto o número de pessoas negras encarceradas é altíssimo, o número de pessoas negras ocupando cargos de poder e liderança persiste ínfimo se visto de forma relativa à proporção de negros na população.
Recentemente, o Conselho Federal de Medicina (CFM) lançou uma nota colocando-se frontalmente contra cotas raciais para as residências médicas. Tal posicionamento evidencia o caráter negligente e racista da classe médica frente à discussão acerca da reparação histórica e medidas na linha de ações afirmativas que busquem mitigar injustiças raciais que ainda persistem. O racismo está no centro de questões como a violência, perpetrada muitas vezes por aqueles de que se espera cuidado, acolhimento e proteção. Dados obstétricos mostram que mulheres negras são mais expostas à violência obstétrica, que recebem menos anestesia durante o parto, como resultado de uma lógica higienista brasileira racista que preconiza preceitos como de que pessoas negras sejam mais resistentes à dor. Como seria possível considerar a mitigação do racismo obstétrico quando a representatividade racial é frontalmente atacada pela classe que preside a autoria das violações em questão? Como reconhecer o racismo obstétrico como um fenômeno social digno de análise e de atenção por parte do poder público e de instituições relevantes quando a questão racial é veemente negligenciada por aqueles que teriam o poder de combatê-la?
Não podemos nos esquecer que este mesmo CFM, que hoje se posiciona de forma a ignorar toda a produção científica em torno da eficácia de cotas para a promoção de maior equidade, inclusão e diversidade, é o mesmo que, durante a pandemia de Covid-19, estava endossando a administração de medicamentos ineficazes para tratar a doença por parte de grupos negacionistas dentro da classe médica.
Além disso, não podemos esquecer da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), que apesar de aprovada há anos, ainda perpassa obstáculos e muitos desafios em sua implementação. São inúmeros os projetos e ações aprovados pelo Ministério da Saúde (MS) relacionados à PNSIPN, alguns com quase dez anos de aprovação, mas que, contudo, seguem parados no MS por falta de interesse ou compromisso com uma população que representa quase 56% da população brasileira.
Portanto, neste mês e dia da Consciência Negra, é imprescindível levantarmos a discussão sobre a saúde integral da população negra; a segurança pública para a população negra; o desenvolvimento sociocultural da população negra; a educação de crianças e jovens negros; a empregabilidade da população negra e, sobretudo, a liberdade de ser quem se é: pessoas negras imbuídas de todos os direitos que a constituição nos confere enquanto cidadãos deste país.
A perspectiva da membra Gisele Camilo:
“Longe de ser homogênea a experiência materna atrelada a outros marcadores sociais da diferença como raça, classe, gênero e deficiência pode significar – e significa – superar barreiras inexpugnáveis. No meu caso, no lugar de mãe negra, solo, de gêmeos, sendo um deles autista. Iniciei o mestrado em 2019 – nesse momento meus filhos estavam com 4 anos – e em meio ao cenário pandêmico entre as muitas outras tarefas realizei minha pesquisa e escrevi minha dissertação. Habitar as diversas esferas da vida social, acadêmica e de trabalho representa um desafio gigantesco, sem rede de apoio pessoal, pública ou institucional. A sociedade patriarcal, racista, misógina requer e exige de mulheres mães a decisão entre cuidar de si e assegurar o bem-estar dos/as filhos/as e algumas vezes de familiares sob seus cuidados. Essa sobrecarga e exploração materna torna-se exponencial para mulheres negras, mães-solo, periféricas na medida em que movimentos coletivos incidem para interditá-la da ocupação de espaços, da produção de conhecimento e da influência de mudança social, cultural e institucional.
Peço licença aos meus Orixás e aos meus ancestrais, saúdo e peço a bênção às minhas mais velhas, cumprimento e celebro as que virão.
Marco histórico em nosso país, este é o primeiro ano que o Dia da Consciência Negra será feriado nacional. Ainda que distante de uma reparação histórica qualificada, tivemos ainda evidenciado no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) questões acerca da cultura e valorização dos povos africanos e afro-brasileira. Isso representa um avanço importante para construção de uma sociedade antirracista.
Erguer a voz por meio desse levante, especialmente nessa data histórica é estratégia de resistência e luta contra todas as interdições – visíveis e invisíveis – passadas, presente e futuras. É ecoar as tecnologias e canções ancestrais, pavimentar e fortalecer o caminho.”
“A vida é começo, meio e começo de novo”.
Nêgo Bispo
Referências
G1. Mães negras e com baixa escolaridade são maiores vítimas em casos de violência obstétrica, diz pesquisa da Fiocruz. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2024/07/08/maes-negras-e-com-baixa-escolaridade-sao-maiores-vitimas-em-casos-de-violencia-obstetrica-diz-pesquisa-da-fiocruz.ghtml.
GELEDÉS. Racismo obstétrico: violência na gestação, parto e puerpério atinge mulheres negras de forma particular. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/racismo-obstetrico-violencia-na-gestacao-parto-e-puerperio-atinge-mulheres-negras-de-forma-particular/?gad_source=1&gclid=CjwKCAiAxea5BhBeEiwAh4t5K_8pcDiOF2wALY6h3RSTZlNToKmQ_KzA5tPIjNZMoBqAwzLQ7oOfJRoCs1UQAvD_BwE>.
SANTANA, A. T. de; COUTO, T. M.; LIMA, K. T. R. dos S.; OLIVEIRA, P. S.; BOMFIM, A. N. A.; ALMEIDA, L. C. G.; RUSMANDO, L. C. S. Racismo obstétrico, um debate em construção no Brasil: percepções de mulheres negras sobre a violência obstétrica. Ciência & Saúde Coletiva, v. 29, n. 9, p. 1-8, 2024.

